terça-feira, 5 de junho de 2007

A Alegoria de Platão

A REPÚBLICA - PLATÃO

LIVRO VII


Est. II p. 514a - 515a

Sócrates (personagem de Platão) inicia sua alegoria da caverna:

- AGORA - continuei - representa da seguinte forma o estado de nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem á frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas[1].


Glauco (jovem ateniense) interlocutor de Sócrates responde:

- Vejo isso - disse ele.

Sócrates:

- Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de todo gênero, que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de homens e animais de pedra, de madeira e de toda espécie de matéria[2]; naturalmente, entre estes porta­dores, uns falam e outros se calam.

Glauco:

- Eis - exclamou - um estranho quadro e estranhos prisioneiros!
515 a - d

Sócrates:

- Eles (os prisioneiros da caverna) se nos assemelham[3] repliquei mas, primeiro, pensas que em tal situação jamais hajam visto algo de si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna que está á sua frente?

Glauco:

- E como poderiam? - observou se são forçados a quedar-se a vida toda com a cabeça imóvel?

Sócrates:

- E com os objetos que desfilam, não acontece o mesmo?

Glauco:

Incontestavelmente.

Sócrates :

- Se, portanto, conseguissem conversar entre si não julgas que tomariam por objetos reais as sombras (projetadas) que avistassem[4]?

Glauco:

- Necessariamente.

Socrates:

- E se a parede do fundo da prisão tivesse eco, cada vez que um dos portadores falasse, creriam ouvir algo além da sombra que passasse diante deles?

Glauco:

Não, por Zeus - disse ele.

Sócrates:

- Seguramente - prossegui - tais homens só atribuirão realidade ás sombras dos objetos fabricados.

Glauco:

- É inteiramente necessário.

Sócrates:

- Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos das cadeias e curados da ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que o forcem a levantar-se ime­diatamente, a volver o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e o ofuscamento o impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxer­gava há pouco. O que achas, pois, que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então eram apenas vãos fantasmas, mas que presentemente, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas passantes, o obrigar, á força de perguntas, a dizer o que é isso?
515d - 516c
Não crês que ficará embaraçado e que as sombras que via há pouco lhe parecera o mais verdadeiras do que os objetos que ora lhe são mostrados?

Glauco:

- Muito mais verdadeiras - reconheceu ele.

Sócrates:

- E se o forçam a fitar a própria luz, não ficarão os seus olhos feridos? não tirará dela a vista, para retornar ás coisas que pode olhar, e não crerá que estas são realmente mais distintas do que as outras que lhe são mostradas?

Glauco:

- Seguramente.

Sócrates:

- E se - prossegui - o arrancam á força de sua caverna, o compelem a escalar a rude e escarpada encosta e não o soltam antes de arrastá-lo até a luz do sol, não sofrerá ele vivamente e não se queixará destas violências? E quando houver chegado á luz, poderá, com os olhos completamente deslumbrados pelo fulgor, distinguir uma só das coisas que agora chamamos verdadeiras?

Glauco:

- Não poderá - respondeu; - ao menos desde logo.

Sócrates:

- Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior. Primeiro distinguirá mais facilmente as som­bras, depois as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas, a seguir os próprios objetos. Após isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da lua, con­templar mais facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante o dia o sol e sua luz.

Glauco:

- Sem dúvida.

Sócrates:

- Por fim, imagino, há de ser o sol, não suas vãs imagens refletidas nas águas ou em qualquer outro local, mas o próprio sol em seu verdadeiro lugar, que ele poderá ver e contemplar tal como é.

Glauco:

- Necessariamente.

Sócrates:

- Depois disso, há de concluir, a respeito do sol, que este que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é causa de tudo quanto ele via, com os seus companheiros, na caverna[5].
516c - e

Glauco:

- Evidentemente, chegará a esta conclusão.

Sócrates:

- Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que nela se professa e dos que aí foram os[6] seus companheiros de cativeiro, não crês que se rejubilará com a mudança e lastimará estes últimos?

Glauco:

- Sim, decerto.

Sócrates:

- E se eles então se concedessem entre si honras e lou­vores, se outorgassem recompensas àquele que captasse com olhar mais vivo a passagem das sombras, que se recordasse melhor das que costumavam vir em primeiro lugar ou em último, ou caminhar juntas, e que, por isso, fosse o mais hábil em adivinhar o aparecimento delas, pensas que o nosso homem sentiria ciúmes destas distinções e alimentaria inveja dos que, entre os prisioneiros, fossem honrados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero[7] não preferirá mil vezes ser apenas um servente de charrua (arado puxado por animal), a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar ás suas antigas ilusões e viver como vivia?

Glauco:

- Sou de tua opinião - assegurou; - ele preferirá sofrer tudo a viver desta maneira.

Sócrates:

- Imagina ainda que este homem torne a descer á caverna e vá sentar-se em seu antigo lugar: não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol?

Glauco:

- Seguramente sim - disse ele.

Sócrates:

- E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em competições, com os cativos que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda está com a vista confusa
517a - de antes que seus olhos se tenham reacostumado (e o hábito á obscuridade exigirá ainda bastante tempo), não provocará riso á própria custa[8] e não dirão eles que, tendo ido para cima, voltou com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar soltá-los e conduzi-los ao alto, e conseguissem eles pegá-lo e matá­-lo, não o matarão[9]?

Glauco:

- Sem dúvida alguma - respondeu.

Sócrates:

- Agora, meu caro Glauco - continuei - cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem ao que dissemos mais acima, comparar o mundo que a vista nos revela á morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol. No que se refere á subida á região superior e á contemplação de seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não te enganarás sobre o meu pensamento, posto que também desejas conhece-lo. Deus sabe se ele é verdadeiro. Quanto a mim, tal é minha opinião: no mundo inteligível, a idéia do bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebe-la sem concluir que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que ela engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz[10]; que, no mundo inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que é preciso vê-la para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na vida pública.

[1] A propósito desta imagern, v. O estudo de A. Diès: "Guignol
à Athènes" no Bulletin de 1'Ássociation Guillaume Budé 14-15, 1927
[2] Estes objetos sao feitos de matérias diversas, assim como o mundo visível e composto de quatro elementos (Jowett e aampbell).

[3] Comparai com o quadro que Ésquilo traça da vida dos homens primitivos (Prometeu Encadeado v. 447-53, trad. francesa de Paul Mazon): "No começo, eles viam sem ver, escutavam sem ouvir e, semelhantes as formas dos sonhos, viviam a longa existência na desordem e na confusão. Ignoravam as casas de tijolos ensolaradas... viviam debaixo da terra, como as formigas ágeis, no fundo de grutas fechadas ao sol". Só emergiram deste estado de barbárie quando Prometeu lhes ensinou a ciência das estações e, depois, a dos números. Como vemos, para Platão o homem sem educação é comparável ao primitivo.
[4] Seguimos no caso o texto da edição Burnet:
[5] Aristóteles inspirou-se nesta passagem no seguinte fragmento que conhecemos so mente por urna traducao de Cícero (De na~ura Deor.,liv. II, 95): "Praeclere ergo Aristoteles: Si eSSCnt, inquit, qui sub terra semper habitavissent bonis et illustribus dornicilus, quae e5sent ornata signis atque picturis instructaque rebus jis omnibus, quibus abundant u, qui beati putantur, nec tamen exissent unquam supra terram, accepissent autem fama et auditione esse quoddam numen et

[6] Platão tem em mente, por certo, aos estadistas cuja ciência puramente empírica não remonta dos efeitos às verdadeiras causas. Cf. liv. V, 473 c e liv. VI, 488 b.

[7]Odisséia XI, verso 489, já citado no livro III, 386 c.
[8] Cf. Fedon, 249 d; 'Teéteto, 174 c-175 b; Sofista 216 d.

[9] Na boca de Sócrates estas palavras adquirem um sentido profético. Nao é, aliás, o condenado pelos Onze que, no Fedon, de­clara conhecer a arte da adivinhação, como os pássaros de Apolo?
[10] V. livro VI, 506 e

Um comentário:

Unknown disse...

Enxergar a verdade, significa pagar o preço, ser num mártir, um São Francisco de Assis, um Jesus Cristo, ser pregado na cruz da rejeição e do desprezo, da desconsideração. Abrir mão do sopro quente e agradável, dos elogios da sociedade. Quem se habilita? Parabéns, Hernandez!